20 fevereiro 2006

A ala católica petista: crise e conseqüências

20/02/2006 21:38 A saída de Francisco Whitaker aponta para problemas não só do PT e do governo, mas da militância religiosaJosé de Souza Martins *Nos últimos dois anos, nomes expressivos da militância católica no Partido dos Trabalhadores têm criticado duramente o governo, ou deixado o partido, ou deixado o governo. Houve uma significativa mudança de atitude em comparação com a cálida acolhida que bispos progressistas e conservadores deram a Lula, na assembléia episcopal de 2003.Um episódio da mudança ocorreu nesta semana. Com uma longa carta justificativa, Francisco Whitaker, da Comissão de Justiça e Paz da CNBB e do Fórum Social Mundial, desligou-se do Partido dos Trabalhadores no primeiro dia de 2006. Trata-se de uma das mais ativas e fundamentais conexões entre o partido e a Igreja. É pessoa com ampla presença em posições de dirigência na rede política paralela e auxiliar do PT e uma das mais representativas dos católicos que optaram pelo petismo.O documento deve ser lido como documento de uma crise não só do PT e do governo Lula, mas sobretudo da crise da militância católica. São várias e significativas as defecções de militantes católicos. Tanto do partido, como esta de Whitaker e a recente de Plínio de Arruda Sampaio, quanto do governo petista, como a de frei Betto e a de Ivo Poletto, originário da Comissão Pastoral da Terra. Como, ainda, as duras críticas de dom Mauro Morelli, dom Tomás Balduíno e dom Demétrio Valentini ao governo. São defecções que expressam os impasses políticos que cercam a justa militância dos que têm fé e não separam sua fé da política e até de um partido. Um modo problemático de atuar politicamente no mundo moderno, mas sem dúvida um fato político.Lula tentara inicialmente organizar um governo de dupla estrutura, oferecendo aos militantes católicos posições adjetivas, praticamente sem poder de decisão nas áreas mais sensíveis da questão social. Literalmente declarou guerra a esse setor da base católica do PT ao demitir o presidente do Incra originário da Pastoral da Terra, que entrara numa disputa por hegemonia com o ministro do Desenvolvimento Agrário. Lula teve de decidir quem era o ministro. Ao mesmo tempo, irritou esses setores da Igreja com a política econômica e a política agrícola. De fato, as tensões com a Igreja aumentaram com a tática de acender uma vela para Deus e outra para o diabo. No encontro de 2005 das Comunidades Eclesiais de Base, ficou claro que esses setores da Igreja querem disputar com Lula e os dirigentes do partido o legado político que consideram delas.O documento de Whitaker é também um documento sobre a crise dos partidos, e não só do PT. Um alerta sobre a inquietação da massa dos que têm algum tipo de consciência política, mas não têm espaço no âmbito partidário e das doutrinas. São os que optam por esquemas de militância, ação política e poder que podem representar, em nome do justo primado do social, uma opção pré-política pelo mundo pré-moderno. Falta uma referência antropológica ao pensamento político brasileiro, aos programas e doutrinas de nossos partidos, não raro alheios às duras convicções dos simples, como essas.O discurso da ética, que é o nervo das objeções dos dissidentes, é o discurso contra o oligarquismo da intransparência do processo político; contra a vitalidade das forças impessoais e ocultas que comandam nossos destinos no mundo moderno. A preocupação com a ética está referida às dificuldades de compreensão dessa personagem diabolicamente invisível que impõe aos justos e puros de um partido ético (e de todos os partidos éticos) sua vontade e seu poder, incompreensíveis na perspectiva do fundamentalismo popular e religioso. A crise entre os católicos que se identificam com o PT e o PT e seu governo é antes de tudo uma crise de compreensão do que é propriamente o processo político e seus mistérios. Não houve traição alguma. Houve subentendidos enganosos e oportunismo. Nem Lula nem o PT mudaram. O processo histórico é que foi decantando as contraditórias camadas desse partido singular, expondo cruamente suas impossibilidades, insuficiências e ilusões.A evasão representa o sangramento dos órgãos vitais do corpo político e místico que é o PT, um partido e um governo entre a cruz e a caldeirinha, o coração lancetado pelas próprias contradições internas. Na verdade, o seu corpo de idéias é um resíduo insuficientemente elaborado do nacional-desenvolvimentismo. Confundem anticapitalismo, antiamericanismo e estatismo com socialismo. São apóstolos de uma restauração, que poderia se atualizar, sem dúvida, mas não na prática frágil das colagens ideológicas e das vizinhanças anômalas. Falemos a verdade: o PT de membros e simpatizantes como Whitaker, Sampaio e Poletto não tem nem nunca teve nada a ver com o PT de Lula e José Dirceu. Waldemar Rossi, aliás, da Pastoral Operária de São Paulo, foi o único que percebeu isso desde os primeiros passos de Lula como sindicalista.A adesão ao PT e a unidade do partido foram costuradas em cima desses fragmentos do passado e de um ideário suficientemente vago para comportar tantas ambigüidades quanto as necessárias para levar o partido político ao poder. Há nas propostas do grupo católico, sem dúvida, muita fé e pouca racionalidade política, e esse é seu maior problema.Sem a ala católica o PT terá dificuldades nas eleições deste ano. Ela é que faz dele um partido nacional. É ela que estabelece a ponte por onde passam os votos da multidão que interpreta a política com o coração, e não com a razão, perdida nos ermos rurais e urbanos da inclusão perversa. É a ponte que nutre a euforia do galicismo ideológico dos intelectuais do silêncio da Paris tropical. Nesse sentido, as defecções podem ser uma retirada estratégica para, desde fora, em face das eleições, jogar Lula contra as forças de acomodação que comandam o PT e obter concessões em suas reivindicações de mudanças e de uma política mais agressiva do governo contra o império, o capital e a propriedade. Pode ser, pois os dissidentes e seus seguidores dificilmente darão seu voto aos partidos da modernidade.*José de Souza Martins é sociólogo e professor da Universidade de São Paulo2006: a esperança contra a desilusãoAs dúvidas remanescentes quanto à capitulação do governo Lula mediante os interesses do grande capital dissiparam-se lentamente ao longo de sua gestão. Ao estancamento da privatização de imensos bens públicos acumulados na fase nacional-desenvolvimentista, devido ao esgotamento do capital produtivo à venda, seguiram-se novas e variadas formas camufladas de desestatização e desnacionalização, a partir da institucionalização das parcerias público-privadas. Prosseguiu-se, ademais, com as reformas institucionais que o mandato anterior não teve tempo para completar, entres as quais se destaca a reforma da Previdência Pública, desprezando direitos constitucionalmente adquiridos por aposentados e pensionistas. O relacionamento com os movimentos sociais, um dos pilares essenciais de um governo dito popular, conformou, talvez, a feição mais melancólica desse mandato: cooptados e aparelhados, enfraqueceram-se e se tornaram presa fácil de pequenas “esmolas”.Sabendo-se ainda inconclusas reformas como a trabalhista, resta grande apreensão em face das projeções insinuadas pelo atual modelo de economia e sociedade, cuja busca de credibilidade perante a banca internacional é, comprovadamente, infinita. Ao mesmo tempo, sabe-se que as eventuais mudanças na política econômica deverão ser meramente cosméticas, oportunisticamente voltadas à liberação de verbas em um ano eleitoral. Um ano de eleição é, em si, uma promessa de mudança. As lições emitidas pelo governo Lula não autorizam, no entanto, a adoção de um otimismo simplista, ou ingenuamente esperançoso. Não obstante, lançar o olhar para além da conjuntura atual deixa mais à vista a luz do fim do túnel: há muitas contradições e insatisfação social provocadas pela intensificação de um modelo altamente anti-social e anti-nacional. A tendência é, portanto, de crítica ao neoliberalismo, com possível emergência em 2006 de importantes movimentos que, como o MST, estiveram quietos em 2005.Danilo Di Giorgi, Fábio Luís, Frei Betto, Gabriel Perissé, Jurandyr O. Negrão, Luis Eça, Luiz Antonio Magalhães, Mário Maestri, Newton Carlos, Osíris L. Filho, Rodolfo Salm, Rogério G. T. da Cunha, Waldemar Rossi e Wladimir Pomar tecem suas projeções para 2006.

A esquerda católica e o PT

20/02/2006 21:34 A esquerda católica e o PTO caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo, publica hoje duas matérias sobre a tendência ao afastamento entre a esquerda católica e o PT. A primeira é uma entrevista com Chico Whitaker, que deixou o PT no início deste mês. A segunda, uma análise do sociólogo José de Souza Martins.Chico Whitaker expressa uma posição muito difundida entre setores da esquerda que romperam (ou estão em processo de ruptura) com o PT: o ceticismo diante dos partidos políticos. Superar este ceticismo, como é bem conhecido um dos principais desafios para quem construir um novo partido de esquerda no Brasil. Por outro lado, a relação — e a busca de ações comuns — com os setores “sem partido” tende a ser uma questão básica para os nossos partidos de esquerda.Martins crítica o que ele entende ser a “pouca racionalidade política” da esquerda católica e sua dificuldade de entender o que são o mundo moderno e a política — adotando uma posição que assume claramente um viés conservador. Além disso, sua idéia de que “nem Lula e nem o PT mudaram” se choca com muitas evidências em contrário. De qualquer maneira, seu artigo levanta pontos interessantes.(João Machado)

A despedida dos fiéis

20/02/2006 21:36 Plínio de Arruda Sampaio deixou o partido. Frei Betto, o governo. A CNBB não poupa crítica. Agora foi a vez do militante Francisco Whitaker se desfiliar da sigla. 'Vou organizar os sem-partido', diz. Lula chegou ao poder com a bênção das lideranças católicas, mas o desencanto com o governo desfaz esse elo. O que está acontecendo entre o PT e a Igreja? 'Crise de compreensão do processo político', afirma José de Souza Martins.Ele não carrega mais a cruz do PTEra um dos principais mantenedores do vínculo petista com a Igreja Católica. Agora, Chico vai se dedicar à sociedade civil, à margem dos partidosRoldão ArrudaFrancisco Whitaker, ou Chico Whitaker, como é mais conhecido, recebeu o repórter na sala de seu apartamento, num antigo edifício, com colunas revestidas de pastilhas, na Rua Arthur de Azevedo, em Pinheiros. Apartamento modesto, de mobília mais modesta ainda, que nesta semana parecia conflagrado, com caixas de livros espalhadas por todos os lados, porque Chico está de mudança para outro lugar, no mesmo bairro. Foram quase três horas de conversa. Aos 74 anos, parece manter a mesma fidelidade aos princípios cristãos que despertaram seu interesse pela política ainda nos anos 50. Foi essa fidelidade, aliás, que o levou a divulgar uma carta, no primeiro dia deste ano, anunciando seu desligamento do PT, ao qual estava filiado desde 1988.Arquiteto de formação, Chico nunca foi nem almejou ser figura de proa no partido. Mas seu desligamento ganhou destaque na cena política porque ele fazia parte da cada vez mais rarefeita reserva moral da legenda; e porque era um dos principais mantenedores dos vínculos do partido com a Igreja Católica e os movimentos autônomos da sociedade civil. Entre outras atividades, Chico é conhecido por ter organizado, a pedido do cardeal Paulo Evaristo Arns, as assembléias populares que encaminharam propostas de leis aos deputados constituintes, nos anos 80; por ter encabeçado, ao lado da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o movimento Iniciativa Popular de Lei contra a Corrupção Eleitoral; e por ter sido um dos fundadores do festejado Fórum Social Mundial.Em 1964, quando veio o golpe militar que derrubou João Goulart, Chico era militante da Ação Popular (AP), organização de esquerda originária de movimentos católicos, e dirigia o setor de planejamento da Superintendência da Reforma Agrária, a Supra, antecessora do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Foi exonerado do cargo e ficou preso durante 15 dias. Perseguido, não conseguiu mais emprego e teve de vender coleções da Enciclopédia Britannica para sobreviver. Um dos compradores foi o coronel que o chamava regularmente para interrogatórios.Em 1965 começou a trabalhar para a CNBB no planejamento de ações pastorais. Mas, em 1966, quando o cerco da ditadura se fechou e sua prisão parecia iminente, deixou o País. Acreditava que ficaria fora um ano, no máximo dois, até a poeira baixar, mas ele e a família só conseguiram retornar 15 anos depois.De volta, envolveu-se com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que nessa época estavam completamente dedicadas à construção do PT. Em 1988 filiou-se ao partido e tornou-se vereador em São Paulo. Permaneceu na Câmara durante dois mandatos e afastouse, porque sempre foi contra a profissionalização política. Agora que está desligado do partido pretende se dedicar inteiramente àquilo que mais preza na política: a organização da sociedade civil, à margem dos partidos.Por que o senhor decidiu agora deixar o partido? Teve algum fato desencadeador dessa decisão?Foi uma oportunidade criada pela crise atual, que, embora não esteja resolvida, leva as pessoas a se posicionar de forma mais clara perante o partido. Quais são as alternativas para quem está descontente, como eu? Uma delas é mudar de partido. Outra, participar da refundação do PT. Preferi uma terceira, com a qual estou envolvido desde antes de me tornar petista, que é a organização política da sociedade. Vou ajudar a organizar os sem-partido.Acredita ser possível refundar o PT?Acho dificílimo. Refundar o partido significa rediscutir orientações políticas, regras. Se continuasse lá dentro, eu proporia a limitação do número de mandatos. Seria uma sinalização para a sociedade da mudança de orientação, impedindo que os militantes virem profissionais da política, usem a política como meio de vida. Mas aprovar uma mudança dessas exige uma luta imensa, porque uma boa parte do PT hoje é formada por militantes profissionalizados e políticos com mandatos que dedicam todo o seu tempo às disputas políticas. Internamente, o PT virou uma máquina extremamente competitiva, na qual intervêm questões pessoais, ambições políticas, disputas pelo poder, pelas candidaturas.Na carta de desligamento, o senhor diz que o partido se desviou de seus propósitos originais. Como isso aconteceu?Os dois desvios fundamentais foram: definir a tomada do Executivo como alvo principal; e concentrar todas as atividades na conquista desse alvo. Esses dois desvios iriam determinar todos os outros - e eu incluo aí a corrupção e o abandono do projeto de mudança do País. Na minha opinião, o mais importante seria conquistar cargos legislativos. Se tivéssemos vereadores bons em todos os municípios, e digo vereador pra valer, que não vai lá para fazer negócio, nos mudávamos o Brasil de baixo pra cima. Deveríamos ter investido mais em bons vereadores, bons deputados, senadores.Há muito tempo o PT se dedica à conquista de cargos executivos. Por que o senhor decidiu atacar isso agora? Houve algum ponto de inflexão?A tomada do poder federal foi um salto fantástico na história do partido. Chegou a um patamar de poder, dinheiro e cargos inacreditavelmente superior ao de governos municipais e estaduais.O senhor falou em abandono do projeto de mudança do País. Pode explicar?Existia o temor, durante a campanha presidencial, de que Lula não ficaria três dias no cargo se desse demonstrações de que pretendia mexer no sistema. Então, a preocupação principal passou a ser dizer que ele não iria mexer em nada, ou seja: "Gente, eu sou de vocês". Trocaram a opção de mudança do País pela tomada da Presidência da República.O risco de deposição era real?Pode ser que sim. O mais terrível, porém, é que no início do governo não houve uma reflexão sobre o que poderia ser feito sem provocar o risco de confronto e deposição. Entraram no governo e não pararam mais para pensar. Lula tinha um potencial forte demais e desperdiçou tudo. Depois surgiu o problema da governabilidade, da base parlamentar, que levou o PT a se associar sem mais nem menos ao PP. E aí destrambelhou tudo.Como Lula poderia ter usado o potencial ao qual o senhor se refere?Vou citar dois setores que teriam sido decisivos. O primeiro seria repensar o mercado interno. Afinal, cerca de 120 milhões de brasileiros estão fora do mercado de consumo. Para qualquer capitalista que se preze, isso é uma mina de ouro. Mas para isso seria necessário elevar salários, orientar a indústria para produzir produtos mais acessíveis e de interesse popular. Ulisses Guimarães já pregava isso lá pelos anos 70, quando foi candidato a presidente. Mas o governo Lula embarcou na tese da exportação e ponto. Se tivessem apostado no mercado interno teriam alterado substancialmente o atual quadro de desigualdade social. A segunda coisa que ele poderia ter feito era a reforma agrária. Não como está fazendo, com assentamentos aqui e ali, mas em massa. Em 1964 já se dizia que o Brasil precisava criar uma classe média no campo, por meio da reforma. Isso seria formidável, porque iríamos incorporar mais gente ao mercado e reduzir a miséria.Por que não fizeram isso?Porque nem passou pela cabeça deles que podiam fazer mudanças. Depois de chegarem ao poder, a preocupação foi se manter lá, fazendo agrados em quem manda. O que vocês querem? Superávit? Vamos lá. Pagamento da dívida? Ok.E os tão alardeados investimentos na área social?São só uma lasquinha, quireras, para equilibrar um pouco as coisas, reduzir a pressão e evitar muita revolução lá embaixo.Na entrevista ao Fantástico, ao falar sobre irregularidades no PT, o presidente disse que foi traído, esfaqueado pelas costas. Poria a mão no fogo por ele?Lula conhece bem o Congresso e suas práticas. Tempos atrás, quando falou que o Brasil se resolveria se fossem tirados de lá os 300 picaretas, ele se referia a negociatas que tinha visto. No caso atual, talvez não conhecesse os detalhes de todas as coisas que aconteciam, mas sabia do espírito da coisa. Podia saber, por exemplo, que tinha um sujeito operando o esquema, embora não soubesse que era Marcos Valério. Ele não é ingênuo a ponto de acreditar que os partidos se aliavam ao governo por identidade política. Pode ser que nunca fique provado que Lula sabia de tudo. Não se pode acreditar, no entanto, que estamos diante de um ingênuo.Acha que o PT pode superar a crise e voltar a mostrar força eleitoral na próxima eleição?O partido está num beco sem saída. Já não pode falar que vai ser diferente, que vai fazer política de forma ética, porque o povo vai retrucar: vocês já falaram isso antes e deu no que deu. Também não pode falar que vai fazer mudanças. Enfim, perdeu o discurso. A crise esvaziou o discurso do PT.Foi por isso que Lula disse que o partido vai ter de sangrar muito?Acho que sim. O tempo de luta interna que o PT vai gastar para se refundar e ganhar credibilidade é tão grande que eu não quero estar nessa.Acredita que o presidente está mesmo indeciso diante da reeleição? Ou só está fazendo cena?Certamente não está tão seguro como estava tempos atrás. Suas certezas estão abaladas. Não se pode esquecer, no entanto, que ele ainda tem uma base popular grande. O bendito Bolsa-Família mantém uma quantidade enorme de pessoas que consideram uma maravilha receber R$ 50 por mês e vão querer que isso continue. Na eleição, vão pensar: "Esse cara pelo menos nos dá R$ 50".Não acha que os programas de transferência de renda deveriam ser acompanhados de políticas de desenvolvimento sustentável, que permitissem às pessoas viver com os próprios recursos?Fazer política compensatória é mais fácil. Para fazer o que você está falando é preciso montar uma estrutura, definir uma política de desenvolvimento e, principalmente, estar preparado para enfrentar resistências, no governo e fora dele. Depois, se conseguir vencer as barreiras, tem de botar gente competente para fazer o negócio andar. É mais trabalhoso. Usar o poder para beneficiar as pessoas é bom; mas mantê-las dependentes é a pior forma de usar o poder.Acreditava-se que com a chegada do PT ao poder seriam ampliadas as formas de participação popular. Afinal, era o partido do Orçamento Participativo, dos Conselhos. No entanto, já se viu que ocorreu um processo inverso: a participação popular recuou. Como vê isso?Isso ocorre, de fato, mas não é maquiavélico. Decorre dos propósitos. Quando enfrentavam governos antagônicos, os movimentos sociais tinham de lutar. Mas, quando estão diante de um governo que diz "nós somos vocês", as lutas parecem desnecessárias. Isso também está ligado àquela prioridade à qual me referi, de eleger o presidente. Os movimentos sociais foram muito úteis para elegê-lo, mas depois tiveram de ouvir: "Não se afoitem e tratem de ir com calma, porque nós vamos resolver tudo". Eu já tinha visto isso na França, com a eleição de François Mitterrand. Ele foi eleito sob a égide da participação popular, após 15 anos de direita prepotente e repressiva. Com a vitória dele ocorreram festas populares, espalharam-se rosas pelas ruas de Paris, saudando o governo de participação. Um mês depois, porém, a conversa era outra: "Segurem o trem, não se animem demais, porque a gente vai resolver".O senhor acha que a oposição exagera nos ataques a Lula, com o intuito de desestabilizar o governo?É óbvio que há exageros. Quando Arthur Virgílio fala é de sair de baixo. Mas isso faz parte da luta política. Na oposição, o PT fazia coisas mais pesadas. Quando Mário Covas era prefeito de São Paulo, a bancada do PT na Câmara, com quatro vereadores, nunca lhe deu um minuto de sossego. Não queria o diálogo, era o ferrinho de dentista em cima do governo. Uma das mais briguentas era a Luiza Erundina. Depois, quando ela se elegeu prefeita, o PSDB agiu exatamente da mesma maneira, o que era desesperador, pois não lhe deram chance de governar e a levaram a optar por governar sem maioria. Essa rivalidade foi crescendo até chegar ao ponto atual, quando os dois principais partidos do País tentam esganar um ao outro.O senhor se sentiu traído pelo PT?Não. Quando alguém se diz traído é porque esperava tudo, menos o que fizeram a ele. O que eu vi foi uma involução progressiva. Eu já detectava há muito tempo certos desvios, flexibilizações. Antes mesmo de entrar para o partido já percebia a tentativa de instrumentalização dos movimentos sociais com objetivos partidários e eleitorais. Nunca me senti bem diante disso, mas, como as Comunidades Eclesiais de Base, com as quais eu trabalhava, viam no PT um espaço a mais que se abria para elas, nós fomos em frente.O senhor falou em flexibilizações. Pode dar um exemplo?Quando era vereador e me recusei a participar de uma manobra irregular, que elevava em até 30% os vencimentos dos vereadores, um companheiro de bancada me chamou de chato de galocha, uma vez que todos os integrantes da Câmara tinham apoiado a proposta. Lideranças do partido também criticaram minha atitude, me chamaram de exagerado. O caso acabou na imprensa, deu um escândalo, o pagamento com acréscimo foi suspenso, alguns cidadãos foram à Justiça, até hoje está tramitando o processo no qual se pede a devolução do dinheiro pago irregularmente.Acha que o PT se igualou aos outros partidos?Não se igualou totalmente porque ainda conta com uma porção significativa de pessoas que acreditam que é possível fazer política de forma diferente.Como vê o papel de José Dirceu nesta crise em que o PT está mergulhado? Acha que a influência dele foi decisiva para que o partido abandonasse o projeto de mudanças?Infelizmente, acho que sim. O Zé tem uma visão extremamente pragmática da política, vê o partido como algo organizado e disciplinado. Ao longo dos anos reuniu em torno dele uma rede de apoiadores, com pessoas de uma lealdade quase canina, e a partir daí montou uma máquina partidária realista, pragmática, sem meios-termos, com a idéia de que o poder deve ser conquistado e exercido. Ao chegar à Presidência, apoiado no Campo Majoritário, adaptou todo o partido a essa sua maneira de ver a política. Ele tem uma história bonita, mas sua visão política é de comando.Não acha que esse pragmatismo foi turbinado pela idéia de que o partido estava do lado mais justo?Sem dúvida. O que está por trás disso é: "Sabemos o que o Brasil precisa e vamos fazer tudo no momento certo".Já que o senhor estabeleceu o paralelo com o PSDB, não acha que José Dirceu tem semelhanças com Sérgio Motta, o trator do primeiro governo de Fernando Henrique?Sim. Estamos falando de dois homens práticos, operacionais, pragmáticos e com grande liderança. Assim como o Zé Dirceu tinha planos de longa permanência no poder, o Serjão também falava que o PSDB precisava ficar 20 anos no comando. Eu conheci bem o Serjão, porque ele também pertenceu à Ação Popular em São Paulo. A principal diferença entre eles é que o Zé procura ser mais persuasivo. Você vai conversar com ele e sai de lá dizendo "o cara tem razão mesmo". É um quadro importante, que deve estar fazendo falta ao Lula.O bispo dom Tomás Balduíno, que apoiou a candidatura de Lula e depois se decepcionou com o governo, tem dito que os movimentos populares erraram ao acreditar que bastava eleger um presidente com perfil de esquerda. O difícil agora, na opinião dele, será vencer a desilusão e reorganizar esses movimentos.Quando voltei do exílio, em 1982, a coisa na qual mais se falava era a necessidade de organizar o povo. Paralelamente havia a tese de que o único caminho viável para obter conquistas sociais era por meio dos partidos. O que houve então? Toda a organização popular foi absorvida pelo PT. Agora é preciso recomeçar a reorganização da sociedade, mas sob outra perspectiva, com autonomia em relação ao partido. Acho que essa é a grande lição que se pode tirar de tudo o que aconteceu agora. A sociedade civil deve ser autônoma em relação ao governo, deve ser capaz de exercer o controle social e de não se deixar domesticar pelos partidos.http://txt.estado.com.br/editorias/2 006/01/08/ali002.html Copyright © 2006 O Estado de S. Paulo. Todos os direitos reservados.